Livro da Semana
Doente e com a alma neblinada, inerte em uma cama ao sabor do tique-taque do velho relógio do avô incrustado na parede, Lena, que sempre viveu de juntar sentidos, sente-se perdendo não só o prumo como também a lembrança das coisas e das palavras. Passa a viver, então, um presente-futuro cheio de limites: externos, porque frequentemente esbarra em móveis e nos cantos de quarto; internos, porque perdera a liberdade de escrever o que pensa, já que as palavras somem — tudo, dentro e fora dela, balança. Lena está repleta de rachaduras como uma construção prestes a desabar. Por isso, o chão “sólido” é tão importante. Nem mesmo o marido estende a ela um chão firme — o casamento se desmanchou no ar quando ele se apaixonou por outra, e o relacionamento está agora oscilante. Ninguém sabe os rumos de um casamento bambo.
A memória, terra imprevisível, é revolvida de tempos em tempos. Em sua reclusão, Lena tenta montar um quebra-cabeça com os retratos antigos que revê. Recompõe a partir daí histórias paralelas, trazendo de volta lembranças do colégio, os amigos, os colegas de redação, os familiares, os irmãos dela na luta contra a ditadura, enfim, tudo é remexido.
Ao final deste lindo romance cheio de esconderijos, tais como a mente da personagem, descobre-se a decisão: “Deu as costas para a casa, sólida e ensolarada. Pendurou a sacola no ombro e, mancando ligeiramente, caminhou em direção ao automóvel que a levaria para o aeroporto. Tão simples, tão fácil, o coração continua, cutum-cutum-cutum-cutum, é só a gente ver onde pisa, cutum-cutum-cutum-cutum, e saber aonde quer chegar”.
Os caminhos da boa ficção são imponderáveis como esta partida de Lena rumo ao desconhecido, assim como toda a história contada em “Tropical sol da liberdade”. O zanzado das formigas iniciou uma caminhada que retrocedeu aos tempos da ditadura, de volta a um Brasil jamais esquecido; a memória viva do passado em contraste com o presente esfacelado na cabeça confusa de Lena parece dizer: perde-se facilmente a lembrança suave dos ventos bons, mas as memórias ardidas são intensas. E é a partir delas que tudo o mais se recompõe.